Colegas que trabalham com apoio a vítimas de violência talvez fiquem malucos com essa série, dirão: “O abusador é sempre o culpado e ponto final!”. Certamente, mas a série vai muito além disso. Em certo momento, pensei: “Não… A série não irá nessa direção de culpabilização da vítima, não, por favor…”. Posteriormente, pensei: “Sim… Ela irá pelo caminho da vítima precisar, loucamente, compreender o que dela havia nas relações abusivas em que esteve, estava e poderia ainda estar envolvida. Sim!”.
Era preciso ao protagonista, Donny, des-cobrir (tirar a coberta), des-vendar (tirar a venda) para ver o que já estava lá no seu modo de ser. Era imprescindível compreender o que tinha de si nessas relações para sentir-se dono de sua história.
Peço licença para traçar um breve paralelo entre a série e a tragédia grega de Édipo. Resumindo, o herói ao consultar o oráculo de Delfos descobre que mataria seu pai e se casaria com sua mãe. A fim de evitar a tragédia, parte destemido para outra cidade, Tebas. Em uma desavença no caminho, mata alguns homens de uma comitiva. Lá chegando desvenda o enigma da esfinge (que, não por acaso, refere-se a temporalidade, decadência e limite humano). Sua resposta ao enigma salva sua vida e a da cidade. Recebe, como recompensa, a mão da rainha Jocasta, viúva de Laio, e o trono. Édipo torna-se rei, herói, salvador dos oprimidos, seguro de ser o dono absoluto de seu próprio destino. Porém, depois de anos, descobre que matara (no caminho à Tebas) seu pai (biológico), Laio, e casara com sua mãe. Repentinamente, vai do céu ao inferno. O herói torna-se um miserável, um parricida, incestuoso e o pior de tudo, um fantoche-vítima dos deuses, impotente diante do poder divino.
A história não poderia acabar aí! A crucial questão (negligenciada pela psicanálise) dessa tragédia é Édipo reivindicar responsabilidade pelos seus atos e pela sua história. Ele poderia ter ficado na superfície da real des-culpa, alegando ignorância em relação às identidades de Laio e Jocasta, mas não! Privar-se de alguma responsabilidade pelos seus atos seria o pior de todos os males, seria considerar-se totalmente impotente, seria apequenar-se, reduzir sua humanidade. Édipo renuncia ao trono e fura os próprios olhos, age como quem protesta “E-U fui impetuoso e minha inocente soberba não me deixou ver”. Foi preciso (necessário e exato) fazer-se cego para ganhar humildade. Não era mero castigo, sua cegueira ajudá-lo-ia a recordar de que é preciso ser cuidadoso, pois somos limitados (nem impotentes, nem donos) em relação aos desdobramentos de nossas ações e controle de nosso futuro. Justamente, a pretensão de saber tudo, poder tudo, deixou-o mais vulnerável. Seu poder residia justamente em saber-se limitado. Tornava-se co-autor, nem mais nem menos, de sua história. A cegueira era um novo recomeço.
Essa busca por co-autoria também aparece em Donny. A série retrata a experiência real do próprio protagonista, que também é o diretor do seriado. Assim como Édipo, ele não conseguia convencer-se de ser apenas vítima do que lhe acontecia. Eu torcia para Donny virar logo a página e contentar-se com o fato de que o bad guy era o bad guy e a mulher crazy era crazy e ponto final, mas, e-xaus-ti-va-men-te, ele retornava aos abusadores (não sentia o ponto final como verdadeiro). Apressada pela agonia, eu queria gritar “sai daí, deixa isso quieto!”, assim como costumamos fazer quando vemos alguém sofrendo. Mas, assim como ele, no fundo, eu sabia que seria insuficiente e suei frio acompanhando sua jornada... Fugir da descoberta que precisava fazer, torná-lo-ia prisioneiro para sempre. Era preciso voltar a mergulhar no terror. Sua busca não era por culpados e inocentes, era por si mesmo. O pesadelo era também uma preciosa oportunidade. Oportunidade de compreender seus medos, suas fragilidades para, a partir daí, poder saber mais de si e ser menos ingênuo (como ele mesmo diz) e, consequentemente, menos vulnerável.
Ele não podia virar a página, simplesmente. Voltava repetidamente em busca de compreensão. Ele sabia que era vítima de crimes, tanto da mulher mentalmente perturbada, como do roteirista pervertido, mas saber isso era pouco. Assim como Édipo, ele não pôde contentar-se com a real inocência. Através da exaustiva busca, pôde descobrir o que havia dele nas suas relações e poderia, enfim, ser menos suscetível a abusos e sentir-se mais poderoso (ao mesmo tempo que mais limitado) e mais livre.
Hanna Arendt descreve o nazista Eischman como menos humano por sua incapacidade de responsabilizar-se sobre seus próprios atos. Na série, ao contrário, somos presenteados com uma overdose de humanidade.
Na cena final, os derradeiros passos para um potencial recomeço! Ele des-cobre, tira a coberta do que já estava lá. Ele finalmente alcança Martha! Ela não é apenas portadora de alguma desordem mental. Ela está sozinha, como quando menina, assim como ele! (como todos nós de alguma maneira). A carência, o medo e a es-pe-ran-ça dela tocam-no. Ele sente os sentimentos dela. Naquele momento, aparece a beleza, apesar do inferno, em ser o baby reindeer. Reconheceu-se no baby reindeer, no garçom e, inclusive, na Martha!
Enfim, sabia mais de si, estava menos vulnerável, poderia recomeçar sua história de um novo lugar.
Bravo!
Parabéns!! Muito bom !!