Fé, menina
- Regina Sanchez
- 22 de out.
- 3 min de leitura

Certa vez, o entrevistador Bial perguntou à Gabriela Medeiros, atriz e mulher trans, o que é ser mulher. Ela não soube responder. Eu, mulher cis, que me considero muito mulher, e nunca fui chegada a saltos, maquiagem, acessórios ou bonecas, também não saberia definir. Do que se trata a diferença entre mulher e homem além da questão física e das construções sociais? Por que a transição de gênero, um caminho tão espinhoso, faz com que tantos homens e mulheres trans sintam-se mais verdadeiros e de acordo consigo mesmos? Obviamente, conceitos de gênero variam de acordo com épocas e culturas, mas do que estamos falando quando dizemos identifico-me como mulher?
Estava com isso na cabeça e fui a um samba, que frequento há alguns anos, e um amigo perguntou “A cantora é trans?”. Trans???, pensei surpresa. Sim, ela é trans e eu nunca havia reparado nisso. Nunca, porque ela É (maiúsculo mesmo) muito mulher, assim como eu, e também sem saias, salto, maquiagem, essas coisas normalmente relacionadas ao feminino! Não reside aí a feminilidade, nem tão pouco no tamanho de seus pés, na sua genitália ou preferência sexual. Independentemente dessas questões, eu não tinha e continuei não tendo dúvidas de que ela é tão feminina ou mais do que qualquer mulher. Justo eu, que não sou chegada a caixinhas e definições, não podia evitar de perguntar, afinal, o que é ser feminina?
Estava com isso na cabeça e fui arrebatada num concerto de Camila Masiso cantando a linda e potente canção Fé, menina. UAU! Será isso o que nos é comum? Um tipo de fé com a qual nos identificamos? Ouvi: Fé, menina! Você vai sofrer tentativas de silenciamento, mas vai continuar lutando com fé. Você é mulher, tem a força de quem protege a prole, é cuidadora! Em nome das queimadas na inquisição, das abusadas de tantas maneiras, fé, menina! Em nome de tanta luta feminina contra opressão em todo canto, em todas as épocas, tenha coragem, fé, menina! Estamos juntas, na luta por independência e justiça, fortes, cúmplices e amorosas, abrindo o coração numa fila de banheiro com uma desconhecida, abrigando quem precisa e aprendendo a dizer não. Será que o feminino reside num tipo de força que vem de uma fé sobre a qual as palavras são poucas? É sentir na pele o mínimo de opressão seja consigo, seja com uma de nós, é defender a honra da luta e sofrimento de sua avó, de sua mãe, defender a liberdade de sua filha, de sua amiga, de uma desconhecida, é colocar o homem em seu devido lugar, nunca mais acima ou à frente, mas ao lado. Fémenina é arregaçar as mangas, os punhos, é misturar fé, amor e luta, gestar fé com luta e amor, luta por amor.
Eu estava com isso no corpo e fui assistir a um show de jazz, quando o músico do xilofone tocou uma música que compôs para seu avô, falecido há um ano, e desmanchei, fiquei sem palavras com o coração transbordando e as lágrimas vazaram. Que beleza emanava do som daquele xilofone! Imagino que não haveria maneira mais bela e precisa, nem sequer outra, do compositor descrever o que havia vivido com seu avô e era uma canção instrumental, ou seja, s-e-m palavras!
Estava com isso no coração e percebi porquê evito falar da perda recente do meu pai, pois as muitas palavras são poucas. O mais próximo para mim de expressar o significado de sua presença e de sua falta foram aquelas doces notas de xilofone. Lembrei de uma senhora que atendo em psicoterapia, que perdeu seu filho, seu grande e único companheiro, de covid. Depois de 3 anos, qualquer palavra sobre sua falta continua parecendo pouco.
Quando vivemos um momento muito genuíno, dizemos “fiquei sem palavras”. A verdade reconhecemos, não a definimos. Estou com isso no corpo, no coração, na alma. Quando cantamos “quem se atreve a me dizer do que é feito o samba?” ou “sinônimo de amor é amaaarrr”, estamos dizendo “Amor não é substantivo, não se encerra em definição!”.
Também sinônimo de feminino é fémeninar, ninar, apoiar, lutar, tudo misturado num sangue de fé; é a voz de uma mulher para outra: “Força, somos fé, menina!”. Nossa feminilidade está na voz castigada e doce da senhorinha no refrão da música (imperdível) Povoada de Sued Nunes “Sou uma, mas não sou só”, está em Dandara, Marielles, Mahins, Marias, Malês, assim como na voz de Kali Peres (do grupo de samba que comentei) simplesmente está… PRE-SEN-TE como dádiva, como presença.



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