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SOBRE A SÉRIE BABY REINDEER

  • Regina Sanchez
  • 20 de set. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 22 de out.

Assisti à arrebatadora série Baby Reindeer. Nos primeiros capítulos pensei: “Não… A estória não irá na direção de culpabilização da vítima, não, por favor... O abusador é sempre o culpado e ponto final.". Quando estava prestes a desistir da série com excelentes recomendações, percebi: Obviamente o abusador é sempre culpado, mas a estória vai muito além disso e pensei: “Sim… A vítima precisava, loucamente, compreender o que dela havia nas relações abusivas em que esteve, estava e ainda poderia estar envolvida, caso não compreendesse. Sim!”. 


O protagonista precisava, imprescindivelmente, des-cobrir (tirar a coberta), des-vendar (tirar a venda) o que já estava lá no seu modo de ser, ou seja, compreender o que tinha de si nessas relações para sentir-se dono de sua história.


Peço licença para traçar um breve paralelo entre a série e a tragédia grega de Édipo. Resumindo, o herói ao consultar o oráculo de Delfos descobre que mataria seu pai e se casaria com sua mãe. Confiante em poder evitar a tragédia, parte destemido para outra cidade, Tebas. Em uma desavença no caminho, mata alguns homens de uma comitiva. Lá chegando desvenda o enigma da esfinge (que, não por acaso, refere-se a temporalidade, decadência e limite humano). Sua resposta ao enigma salva sua vida e a da cidade. Recebe, como recompensa, a mão da rainha Jocasta, viúva de Laio, e o trono. Édipo torna-se rei, herói, salvador dos oprimidos, seguro de ser o dono absoluto de seu próprio destino. Porém, depois de anos, descobre que matara (no caminho à Tebas) seu pai (biológico), Laio, e casara com sua mãe. Repentinamente, vai do céu ao inferno. O herói torna-se um miserável, um parricida, incestuoso e o pior de tudo, um fantoche dos deuses, vítima impotente do poder divino.

A história não poderia acabar aí! A crucial questão (negligenciada pela psicanálise) dessa tragédia é Édipo reivindicar responsabilidade pelos seus atos e pela sua história. Ele poderia ter escolhido se colocar como vítima e tentar des-culpar-se (tirar a culpa), afinal tentou fugir do seu destino, não sabia o que estava fazendo, mas não! Privar-se de alguma responsabilidade pelos seus atos seria o pior de todos os males, seria considerar-se totalmente impotente, seria apequenar-se, reduzir sua humanidade. Édipo renuncia do trono e fura os próprios olhos, age como quem protesta “E-U também fui responsável com minha impetuosidade, ingenuidade, presunção”. Não era castigo. Fazer-se cego foi preciso (necessário e exato) para ganhar humildade e reconhecer que, como humanos, somos limitados no que podemos ver e prever. Justamente, a pretensão de saber tudo, poder tudo, deixou-o mais vulnerável. Sua potência residiria em reconhecer-se limitado para tornar-se co-autor de sua estória, nem onipotente nem impotente.  A cegueira reivindicava alguma autoria de seus atos e marcaria um recomeço, talvez de parceria com os deuses.


Essa busca por co-autoria também aparece em Donny, o protagonista da série. A estória fica ainda mais potente por ser baseada na experiência real do próprio ator, que também é o diretor da série. Assim como Édipo, ele não conseguia convencer-se de ser apenas vítima do que lhe acontecia. Eu torcia para Donny virar logo a página e contentar-se com o fato de que o bad guy era o bad guy e a mulher crazy era crazy e ponto final, mas, e-xaus-ti-va-men-te, ele retornava aos abusadores (não sentia o ponto final como verdadeiro). Agoniada, eu gritava baixinho “sai daí, deixa isso quieto!”, do mesmo modo como apressamos alguém sofrendo. Mas, assim como ele, no fundo, eu sabia que seria insuficiente e suei frio acompanhando sua jornada... Fugir da descoberta que precisava fazer, torná-lo-ia prisioneiro para sempre. Era preciso voltar a mergulhar no terror. Sua busca não era por culpados e inocentes, era por si mesmo. O pesadelo era também uma preciosa oportunidade. Oportunidade de compreender seus medos, suas fragilidades para, a partir daí, poder saber mais de si e ser menos ingênuo (como ele mesmo diz) e, consequentemente, menos vulnerável.

Ele não podia virar a página, simplesmente. Voltava repetidamente em busca de compreensão. Ele sabia que era vítima de crimes, tanto da mulher mentalmente perturbada, como do roteirista pervertido, mas saber isso era pouco. Assim como Édipo, ele não pôde contentar-se com a real inocência. Através da exaustiva busca, pôde descobrir o que havia dele nas suas relações e poderia, enfim, ser menos suscetível a abusos e sentir-se mais poderoso, ao mesmo tempo que mais limitado, e mais  livre.

Hanna Arendt descreve o nazista Eischman como menos humano por sua incapacidade de responsabilizar-se sobre seus próprios atos. Na série, ao contrário, somos presenteados com uma overdose de humanidade.

Na cena final, os derradeiros passos para um potencial recomeço! Ele des-cobre, tira a coberta do que já estava lá. Ele finalmente alcança Martha! Ela não é apenas portadora de algum transtorno mental. Ela está sozinha, como quando menina, assim como ele! (como todos nós de alguma maneira). A carência, o medo e a es-pe-ran-ça dela tocam-no. Ele sente os sentimentos dela. Naquele momento, aparece a beleza, apesar do inferno, em ser o baby reindeer. Reconheceu-se no baby reindeer, no garçom e, inclusive, na Martha!

Enfim, sabia mais de si, estava menos vulnerável, poderia recomeçar sua história de um novo lugar.

Bravo, bravo!  


ree

 
 
 

1 comentário


Convidado:
01 de out. de 2024

Parabéns!! Muito bom !!

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